Críticas - Críticos de Arte

| Alice Branco

    MOITA MACEDO

    Quando analisamos a obra plástica de Moita de Macedo, logo nos confrontámos com duas realidades de uma mesma personalidade, a pintura e a poesia, que se revelavam díspares na sua aparência formal.

    Interrogados logo no inicio as nossa analise sobre a prevalência de um dos campos sobre o outro, a poesia a sobrepor-se à vertente pictórica ou vice-versa, cedo concluímos que a resposta dificilmente nos surgiria de forma clara, sem que contudo deixasse alguma vez de persistir.

    Ao longo do tempo em que fomos contactando , a titulo póstumo, com as duas vertentes da obra de Moita Macedo, fomos percebendo o reflexo da poesia na expressão plástica. Tal como a poesia, a pintura serve a Moita de Macedo para libertar a sua torrente de paixão interior. Debrucemo-nos pois sobre a analise polemica da essencialidade artística em Moita de Macedo.

    Moita de Macedo, poeta ou pintor?

    É por um lado uma pergunta vã, tornando-se por outro lado uma pergunta absolutamente incontornável na percepção da analise da sua obra. Naquilo que na aparência formal do signo da escrita e da pintura é absolutamente diverso, constitui na essência sígnica uma, e só uma realidade. Signo e símbolo reflectem a mesma preocupação metafísica expressos pelas duas formas de arte.

    O indivíduo José Albano Pontes Santos Moita Morais de Macedo é o artista que sofre e ama. Ama, por isso sofre, e sofre porque ama. É precisamente neste quadro de dura conflitualidade interior que se vai desenvolver toda a sua actividade artística: a plástica e a literária. Sentimentos como a paixão estão presentes nas duas formas de expressão. São no fundo duas formulas diferentes de manifestar os mesmos sentimentos.

    Distinguir o primado de uma das expressões artísticas sobre a outra constitui uma tarefa de tal forma inútil como, e iremos vê-lo de seguida, dissecar influencias profundas de diversas correntes artísticas contemporâneas de Moita de Macedo...

    Não há na aparência uma relação directa entre as suas duas facetas. Da mesma forma que a sua poesia é arrebatadora e fluida, assim também a pintura é reflexo disso. Poder-se-á também incluir a sua pintura no Gestualismo, se atendermos ao automatismo e á cadência cinética da sua pincelada...

    Nascido a 17 de Outubro de 1390 em Benfica do Ribatejo, as primeiras iniciativas em que deu livre curso à sua expressão artística foram precisamente desenhos das campinas ribatejanas e do mar. Desenhar é, aliás, actividade que Moita de Macedo vai prosseguir freneticamente ao longo de toda a sua vida, sendo os suportes da mais variada natureza e tamanho, bem como a natureza dos locais escolhidos para o fazer. O desenho constitui para Moita de Macedo forma de expressar os seus sentimentos, não deixando escapar a forte emoção provocada pelas circunstâncias do momento...

    ... Mas é no reino das cores quentes e vibrantes que o ribatejano Moita de Macedo mais se identifica. Os vermelhos são-lhe particularmente queridos...

    Ao contrario da maior parte dos escritos que sobre a obra plástica de Moita de Macedo existem, consideramos que, na generalidade, as suas obras de cunho abstracto se podem englobar na corrente informalista. O Gestualismo é adequado para caracterizar a sua obra; mas, se por um lado se adequa para caracterizar a sua actuação, por outro não define o seu psiquismo. Porque julgamos que, e basta passar em analise, da dialéctica, aparentemente contraditória, da evolução da Forma à Mancha, há depois, por seu turno, uma inversão, que é a busca do objecto pela não forma...

    Alice Branco, Licenciada em Historia Arte, Quadro da Câmara Municipal de Lisboa

| António Franco

    PINTOR E POETA

    Da palavra para a imagem, da imagem para a palavra. Pintor e poeta. Poeta como artista. Moita Macedo caminhou como criador através desse imaginário sem limites no qual os signos se iluminam e falam da mesma experiência que os signos pintados ou as vozes escritas.

    O seu hábito e o seu exercício, escrever e pintar ao mesmo tempo, serviram-lhe para deixar um sensível testemunho da sua vida, da sua duração, do seu momento.

    Ele mesmo disse: escrevi quadros... pintei versos. E essa circuns-tância, que teve e tem uma longa tradição na cultura moderna, dis-tingue-lhe geracionalmente no grupo de artistas que abriram um amplo frente ao abstracionismo na pintura portuguesa de meados do século passado. Teve como referências, entre outros, a Almada Negreiros e a Artur Bual e participou do momento no qual em Portugal fizeram deles, na opinião de José Augusto França, artistas como Vespeira, Fernando Azevedo, Joaquim Rodrigo, Menez, Fernando Lanhas, D' Assumpção, João Vieira ou Nadir Afonso, quando o discurso dominante era pintado (e escrito), à sombra do expressionismo abstrato e da pintura informalista.

    Moita Macedo viveu anos difíceis e foi uma testemunha comprometida do seu tempo. No gesto impaciente e excitado que descreve boa parte da sua obra (pintada ou escrita), fica o registro daquela emoção pessoal da qual seus afetos mais fortes são impregnados e abstraídos, seu relacionamento com os outros, as suas preocupações políticas.

    O fato de seu esforço ser adicionado à rachadura aberta no país pelos novos abstratos, não quer dizer que sua arte, como a de muitos dos seus outros companheiros de tendência, não fosse uma arte ideológica, feita naqueles anos emblema da liberdade e adversário da ditadura.

    Foi nesse espaço de vontade e força que Moita Macedo pintou e escreveu, apropriando-se por igual e à sua maneira do ativo fluxo dessas linguagems. E é daquel tempo, o que viveu, do qual falam os seus avidezes e trabalhos. Mas não apenas... O quadro e o verso conservam o fôlego. Os ideais são atemporais e o artista, o verdadeiro artista, não vive apenas dentro, mas também fora, de seu próprio tempo.

    António Franco, historiador de arte

| António Valdemar

    SOBRE A PINTURA DE MOITA MACEDO

    "Para Moita Macedo a pintura constituiu o processo de comunicação integral de uma sensibilidade sempre desperta para todos os problemas do homem e do universo.

    Será, porventura, muito difícil averiguar onde principiava o poeta e onde começava o pintor. Estou certo que ambos se completavam no mesmo ímpeto vertiginoso de afirmação, de procura e descobertas contínuas e em que se manifestavam os clamores explosivos da insatisfação.

    Pintor gestual, apresentava, na força da matéria e com grande poder expressionista, sucessivas paisagens com barcos. De certo que o mar simbolizava para Moita Macedo a essência dos contrários, que retém e destrói o livre movimento e traduz o dinamismo primordial anterior à formação do Cosmos.

    Outro tema dominante (estive para chamar-lhe obsessivo) foi o universo da tauromaquia, a sedução e o mistério da festa brava, a vida e a morte jogadas no espaço circular da arena, ao surpreender touro e toureiro num só corpo, quando ainda não se distingue o vencedor do vencido. Dir-se-ia o encontro visceral com a génese, da Ibéria, nas suas mais profundas razões.

    Nada mais embaraçoso do que encontrar definições categóricas. Recordo os versos de Cesário Verde “Se eu não morresse nunca / e eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas …”.

    Assim se poderá sintetizar o percurso de Moita de Macedo. Ele próprio, talvez, escolhesse estas palavras emblemáticas para definir a sua ambição suprema.

    Todavia, a morte colocou ponto final (quando menos se esperava) numa vida breve e numa obra que teria, ainda, muito mais a dizer."

    António Valdemar, da Academia das Ciências de Lisboa e da Academia Nacional de Belas Artes, Dezembro 96

| Edgardo Xavier

    SOBRE MOITA MACEDO

    "Tenho a memória cheia de registos, como se de um arquivo arcaico se tratasse. Riscos, manchas, escorridos. As figuras emergem, afundam, revelam-se e desaparecem. Regressam em carne, tela, papel, pedra, madeira ou bronze. Algumas, apenas esboçadas, são como imagens delidas neste insólito armazém de Arte. De Artes. Mal balbucio um nome e eis que, deste magma sensorial, me surge a visão das obras, das referências, dos créditos … com ou sem o autor presente.

    A celeridade deste processo depende do tempo que passou, mas também da impressão causada e da duração do convívio. Há nomes que, gravados com a força do afecto, rompem as mil camadas dos que vieram depois e acendem-se logo para a vida plena de sentido. Moita Macedo é um deles. Revejo-o, meão de altura, um entre muitos, não for a o timbre da voz, o brilho febril dos olhos e o emocionado dos gestos a emprestar paixão ao que dizia. Poemas e histórias; projectos e trivialidades; os abismos em que deixava planar o seu espírito de homem bom e generoso.

    Sempre sensível, pintou como viveu, em ritmos intensos e frequentemente anárquicos. As pausas aconteciam mas a serenidade era, no contexto da sua pintura, sempre paradoxal.

    Às vezes “agarrava” imagens reais, prendia-as com liames de cor e limitava-as com traços enérgicos. Corpos e rostos nasciam assim, ébrios de tinta, macerados por amor ou desespero. Esgotava-se neste exercício a um tempo doloroso e lúdico, racional ou automático. Quando, finalmente, terminava, só restavam vestígios do tema e a impressão gestual a denunciar a luta, invariavelmente íntima e possessiva.

    Avesso a qualquer escola, corrente ou tendência estética, pautou-se pela intuição e disse do caos e da tormenta num neo-expressionismo que tem, como obsessões óbvias, o drama e a teatralidade dos espectros que perseguia para dar corpo e voz à sua própria inquietação. Nem serenidade ne3m esperança existem na sua pintura muitas vezes sombria.

    Oscilação entre a figuração e os abstraccionismo, Moita Macedo reflecte-se no vago das formas sugeridas, na opacidade dos negros puros, dos ocres e dos azuis penumbrosos, onde, vez por outra e ainda por excesso, acontece o branco, como uma luz que tanto ilumina como cega."

    Sintra, Fevereiro 2001

    Edgardo Xavier, Crítico de Artes Plásticas da Associação Internacional de Críticos de Arte - Portugal

| Eurico Gonçalves

    A NOITE ERA GRITO E ERA GEMIDO

    Nascido no Ribatejo, em 1930, Moita Macedo faleceu em Lisboa, em 1983. Não o conheci senão de vista, rodeado de amigos, que o admiravam pela qualidade humana da sua natureza impulsiva, fraterna, viva e comunicativa. Poeta e pintor, imagino-o, em momentos de solidão, a escrever, a desenhar e a pintar continuamente, em múltiplos e pequeninos papéis, que amontoou ao longo de uma existência atormentada. Muitos desses desenhos e pinturas permanecem ainda inéditos, enquanto muitos outros figuraram em numerosas exposições individuais e colectivas, desde 1969.

    O autor dos “Poemas da Terra” dos homens sem rosto, escreveu o traço com que fere as suas telas, em tons de cinza e negro, “o grito do animal encurralado (…) amálgama de traços, cores e sentimentos”.

    “Queria que os meus poemas fossem gritos / capazes de romperem alvoradas” – escreveu o poeta, que amou a terra, o mar e a gente da noite, no seu país, que evocou com saudade e desespero. “No meu país o poema diz mar / No meu país há gente a chorar” (…) “Gente da noite (…) mistura estranha de vultos oprimidos” (…) gente da noite / em noite fria / branco sujo de azul e agonia”. (…) “Quando as bocas se calaram (…) silêncios ficaram pedras”. (…) “Saudade é quando corro (…) e grito / Saudade é quando busco o infinito (…) A noite era grito e era gemido (…) teu corpo despido”. (…) “O meu caminho é rude e agreste / e sob a sombra do azul / há sombras de um cipreste”. (…) “Aqui a minha terra / onde os silêncios gritam” (…) “às vezes anoite em pleno dia”.

    A matéria informar da sua pintura neo-expressionista é marcada por mil dilacerações de uma vivência exasperada. Na fronteira da figuração/abstracção, a sua obra oscila entre o paisagismo abstracto e a figuração distorcida de vultos humanos, rostos, máscaras, cabeças de Cristo, crucificações. A tinta empastada e rapada acentua o ritmo orgânico do gesto, que gera uma pintura nocturna, intensamente dramática, com tons sombrios e negros, quase cerrados, onde, por vezes, se vislumbra a luz velada de vermelhos sanguíneos, azuis pálidos e repentinos brancos.

    O gesto impulsivo do pintor exalta “a beleza convulsiva da matéria”. Vermelhos sanguíneos, negros, castanhos, cinzentos, azuis frios e brancos sujos são os tons dominantes de uma paleta condizente com o temperamento arrebatado e perturbado do pintor, que articula manchas sobrepostas em pequenas superfícies, minúsculos territórios, onde se condensa toda a tragédia do mundo. Na dimensão reduzida do suporte, a execução rápida e nervosa alastra em mil pequenos papéis e telas. Tal forma acumulativa de trabalhar pressupõe ritual, que confirma a insatisfação do espírito inquieto do artista, ávido de uma experimentação constante.

    A técnica mista é a que melhor se adapta a esta sua maneira exaustiva de desenhar e pintar. Sem solução aparente, a obra de Moita Macedo testemunha uma densa tensão interior. A sua arte exprime o fervor intranquilo de uma natureza emotiva, a ânsia de quem impacientemente tenta conjugar as múltiplas leituras de uma linguagem fragmentada, diversificada e, por vezes, dispersa, que recusa fechar-se em qualquer sistema ou definição categórica.

    Autodidacta ou sem escola que lhe valha, o pintor-poeta sempre preferiu a ousadia de uma técnica irregular, espontânea e insubmissa e avessa a qualquer tipo de organização formal. No caos ele sabia que não era fácil permanecer, embora não tivesse encontrado outra alternativa que o satisfizesse. O que o atormentava era algo disforme, visceral e monstruoso como um corpo irremediavelmente despedaçado. A matéria árdua dessa experiência dolorosa remete-nos para a noite sem fim dos que adormecem na pedra fria e gritam de desespero, após a catástrofe sem nome. Sem se fixar em nada, a sua pintura é o trajecto dos que deixam apenas a sombra de um grito sufocante. Não h´+a alegria, nem sequer esperança, mas sim a profunfidade humana de olhar perdido na treva. Sem querer cristalizar-se, o que resta é a vertigem de um gesto repentista que irrompe em diversas direcções, na lama movediça dos caminhos.

    Eurico Gonçalves, Novembro 1996

| Fernando Batista Pereira

    MOITA MACEDO - PINTURA E DESENHO

    "Apesar de pouco ter ultrapassado o meio século, a vida de José Albano Pontes Santos Moita Morais de Macedo (Benfica do Ribatejo, 17-X-1930 - Lisboa, 15-V-1983), trabalhador e animador cultural na Siderurgia Nacional, soldado na antiga Índia Portuguesa e lutador incansável pela liberdade e pela igualdade, pintor e poeta nas tertúlias lisboetas dos anos sessenta e setenta, foi apaixonadamente vivida (Não me peças remorsos / os momentos da vida / Vivi-os!), tanto no plano estritamente pessoal como no público, neste caso sempre em prol de diversas causas de carácter colectivo, tendo como meta alcançar uma sociedade mais livre, mais fraterna e menos injusta, em que o abraço entre a Arte e o Humanismo seria pilar essencial.

    A sua actividade pictórica está essencialmente concentrada nos últimos dez a treze anos de vida (1970-1983), embora subsistam diversos registos artísticos de épocas anteriores, uns fruto de antigas aprendizagens (gravação sobre marfim), outros reveladores das inquietações que o conduziriam à busca incessante, centrada no espírito e na mão, da forma e da matéria, conducente à libertação plena do seu «eu» criador.

    O pintor descreveu, logo em 1973, no início da última década de vida, que seria também o período que assistiria à sua mais intensa produção artística, o seu original processo criativo, em que o desenho «de memória», quase «automático», como queriam, afinal, as diversas poéticas de ascendente surrealista e as derivações do «informalismo» e do «gestualismo» a que habitualmente o associamos, assume um papel crucial. Definiu esse processo como memografismo, termo que, dez anos depois, em 1983, continuava a reter: ...memografismo, aquilo que teimosamente nos fica na memória.

    Moita Macedo deixou-nos múltiplos «registos» pictóricos, gráficos e verbais dessa original via de libertação, não apenas interior mas materializada num fluxo contínuo e interactivo entre o espírito e a mão - em que, naturalmente, teremos também de incluir os sentidos poemas que escreveu e que seriam reunidos em volume autónomo postumamente.

    Vários escritores e críticos escreveram ora sobre a pintura e o desenho (Eurico Gonçalves, Sílvia Chicó, Maria João Fernandes, Alice Branco) ora sobre a poesia de Moita Macedo (Urbano Tavares Rodrigues), esclarecendo vários dos seus aspectos formais e dos seus contextos de desenvolvimento. Nós próprios, num livro cujo lançamento acompanha esta exposição antológica no Museu do Trabalho Michel Giacometti, procurámos interrogar, em simultâneo, as duas expressões, a verbal e a gráfica, do seu percurso criador, indissociáveis no sujeito e no seu legado, como, aliás, o próprio pintor se encarregou de nos lembrar, tanto em dois simples mas eloquentes versos: "Pintei versos, Escrevi quadros" como num outro poema:

    "Se de mim Só ficar o poema Mesmo assim - - valeu a pena"

    ou, ainda, na frase que constitui uma eloquente profissão de fé, na apresentação que fez da sua exposição no restaurante Adega do Zé da Rosa, em Lisboa, em 1982: o desenho/pintura, a memória e futuro da minha forma de ser e estar, são o meu testemunho de acreditar na liberdade pessoal de expressão.

    O «poema» que ficou de Moita Macedo desdobra-se tanto pelos mundos visionados nos seus inspirados poemas como pela poética da experimentação e da liberdade realizada nas pinturas e nos inúmeros desenhos que nos legou.

    É certo que a sua poesia parece muito mais obviamente «interventiva» e «comprometida», para não dizer por vezes mesmo «panfletária», do que a sua pintura ou o vasto mundo do desenho, em que são relativamente raras, no conjunto global, as composições que se referem de forma directa, por exemplo, a situações ou a acontecimentos concretos vividos pelo autor antes, durante e depois da Revolução de Abril. O facto de, como pintor, Moita Macedo se ter confessado «despojado» «do desejo de tudo o que se assemelhe a uma representação do real aparente (realidade só visual)», explicará essa rarefacção da referência ao concreto, em contraste com o que vemos na escrita.

    Urbano Tavares Rodrigues sublinhou o facto de a poesia de Moita Macedo oferecer o aspecto de páginas de um diário, assumindo um carácter de «apontamentos, na sua rapidez, no seu inacabamento, nos seus fulgores de ironia, nas suas cáusticas condenações do egoísmo triunfante, nos seus momentos de beleza», o que não estará muito longe do que se passa com as diversas séries tanto de pinturas como de desenhos. Muitos destes são realizados a tinta da china sobre papel, mas também os há em diferentes outros materiais e técnicas, utilizando amiúde a cor, como, de resto acontece com os exemplares seleccionados para esta exposição. Esse vasto legado de desenhos constitui um verdadeiro diário do diálogo entre o espírito e a mão no seu itinerário de libertação, singulares poemas com que se foram escrevendo aquelas «formas memoriais de um mundo concreto e de emocionalismos tradicionais».

    Essas «formas memoriais» agrupam-se por núcleos temáticos bem definidos, comuns à pintura e ao desenho - o esplendor do corpo feminino nú, os rostos e as máscaras, as cidades, os Quixotes, as tauromaquias, as caravelas, os Cristos e as composições puramente abstractas de carácter profundamente gestual e experimental em que o autor 'Desenhou/Escreveu' de forma eventualmente mais explícita, aquilo que ele entendeu como a «libertação do gesto criador».

    Nesta exposição, em que se apresentam desenhos e pinturas que se estendem de 1970 a 1983, tanto de pequeno como de médio formato e algumas de maior escala, em várias técnicas e diferentes suportes, estão representados praticamente todos esses temas.

    Vários desses grandes núcleos temáticos têm correspondência directa em diversas poesias que escreveu, o que reforça a indissolúvel ligação entre ambos os universos da sua qualificada expressão. O primeiro de todos esses agrupamentos, pela invulgar quantidade de exemplares de todas as épocas é o que se reporta ao corpo feminino, na sua nudez eternamente inspiradora, que o pintor-poeta considerou: "Meu pão, meu conduto" no mesmo poema em que o associa aos gestos e à mão

    Um outro importante núcleo temático - o dos Quixotes - tem também directa correspondência textual em algumas das mais belas poesias que escreveu, quando anunciou que: "o meu sonho é um cavalo" e se identificou, no Poema a Dulcineia, com o herói cervantino, no seu combate contra os moinhos vento, perseguindo a utopia, esse alimento da esperança:

    Às cidades, que têm lugar privilegiado na sua obra plástica, tanto na pintura como no desenho, em composições ora tendencialmente monocromáticas ora em quadrículas estridentes de cor, como se constata nesta exposição, dedicou todo um interessante ciclo poético, além de referências dispersas noutros poemas.

    Mais subtil é a relação do vasto núcleo de Cristos desenhados e pintados (em que se incluem alguns Calvários) com os poemas publicados. A cruz e o Crucificado, tão omnipresentes na sua obra plástica, tornam-se não apenas num símbolo de libertação mas também de amor incondicional, como encontramos em Amigo."

    Prof. Dr. Fernando António Batista Pereira

| João Silvério

    SOBRE OS DESENHOS DE MOITA MACEDO

    O artista Moita Macedo, de seu nome José Albano Pontes Santos Moita Morais de Macedo, foi um homem das artes e das letras que desenvolveu o seu percurso intelectual como poeta e artista autodi-dacta, marcado por uma consciência social de forte traço humanis-ta. A sua ligação ao universo artístico inicia-se com o contacto com artistas e artífices de diversas áreas, vivência essa que está na esteira de trabalhos de restauro que executa nos anos cinquenta, como por exemplo o da Capela de Nossa Senhora do Mar, em Damão, na Índia, durante o cumprimento do serviço militar. Esse seria o início de um caminho que prosseguiu durante toda sua vida e que foi cruzado pelo contacto com artistas de diferentes gerações. Entre estes, na década de sessenta, o encontro com Almada Negreiros virá a determinar um carácter experimental no seu estudo da gravura, descobrindo nas primeiras experiências sobre vidro riscado a gestualidade firme que encontramos nos seus desenhos. Neste aspecto, uma parte da sua vasta produção de desenho revela uma austeridade de meios, uma utilização da cor muito controlada e uma economia do gesto presente na concentração e sobreposição dos traços, man-chas, espatuladas firmes mas contidas, executadas numa acção rápi-da, como se a intensidade que reconhecemos na sua obra fosse uma outra forma de escrita. É o próprio artista que nos revela esta dupla correspondência entre duas linguagens que se cruzam, as artes plásticas e a escrita, que desenvolveu como poeta e pensador, nas mui-cisas exões que escreveu, onde nos diz o seguinte: «Pintei versos, escrevi quadros». Mas a reflexão sobre o seu trabalho, herdeira de uma linhagem de artistas que plasmavam na escrita preocupações e questionamentos sobre a sua obra, o acto de fazer e a relação deste com o mundo, confronta-nos com uma observação introspectiva e crítica bastante mais profunda quando os seus escritos nos levam ao encontro de questões ligadas ao processo, aos procedimentos e ao confronto com a memória. A seguinte passagem, que Fernando António Baptista Pereira refere num texto sobre a obra do artista, é um dos exemplos da forma como Moita Macedo procede a essa auscultação das suas vivências a partir dos desafios que a sua prática artística coloca: «O pintor descreveu, logo em 1973, no início da última década de vida, que seria também o período que assistiria à sua mais intensa produção artística, o seu original processo cria-tivo, em que o desenho "de memória" , quase "automático", como queriam, afinal, as diversas poéticas de ascendente surrealista e as derivações do "informalismo" e do "gestualismo" a que habitualmente o associamos, assume um papel crucial. Definiu esse processo como memografismo, termo que, dez anos depois, em 1983, continuava a reter: ...memografismo, aquilo que teimosamente nos fica na memória».

    Ainda na mesma década, nos registos escritos pelo artista, confirmamos a evidência dessa exteriorização da memória: «Por vezes, são talvez simples recordações de um caminho antes percorrido (ainda que por outros), o tal teima em existir no nosso subconsciente...

    É a esta extemporânea libertação de memória, à sua presença-mar-ca sobre uma base de sustentação, que eu chamo — na falta de lhe saber dar melhor nome - memografismo». E essa evidência é, em primeiro lugar, uma condição contraditória na consciência da «pre-sença-marca», que virá a moldar uma prática do gesto e do desenho que opera no reconhecimento desta. Em segundo lugar, é um movimento libertador, porque não fica refém desse mesmo recon-hecimento, desenvolvendo-se como um processo cumulativo em que um desenho é um fragmento de uma ou mais séries presentes nos desenhos seleccionados para este inventário da escrita/ desenho.

    Como um diário que resgata à memória a intensidade da vida na correspondência mais estreita com a urgência do gesto.

    João Silvério

| Joaquim Oliveira Caetano

    NA NOITE UM CAVALO DANÇA. REVISITAÇÃO DA PINTURA DE MOITA MACEDO

    José Albano Pontes Santos Moita Morais de Macedo, artisticamente Moita Macedo, nasceu em Benfica do Ribatejo, em 1930, e viria a falecer em 1983. A biografia, de certa forma oficial, introduzida na página do artista na Internet e repetida nas várias o pior etc, pro dia da socaro do avỏ, José Luís Santos Moita, médico, republicano, deputado à assembleia constituinte de 1911 e governador civil de Santarém, terá sido importante no caráter moral e na formação de uma consclência cívica avessa a desigualdades e opressões. Por cer-to, a juventude passada na campina ribatejana foi também um elemento central nessa formação, quer no contacto com o mundo do trabalho, quer na contemplação da paisagem da leziria.

    Os cavalos em movimento serão sempre um tema para a sua obra plástica e também poética, e uma referência metafórica da sua própria liberdade e independência:

    "o meu sonho é um cavalo / sem ter freio/ meu suporte e razão / de asas aladas / que me leva pairando nas alturas / a quanto sinto a pequenez das estradas*

    "Defínição de uma Plástica*, in Poemas, Estar ed, 2002.

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  • Joaquim Oliveira Caetano, licenciado em História de Arte

| Luísa Soares de Oliveira

    O TRAÇO QUE FERE AS TELAS

    A obra pictórica e desenhística de Mota Macedo, pintor prematuramente falecido em 1983, com 52 anos, goza hoje do estatuto rarísimo daqueles segredos que quem os conhecer guarda preciosamente como fonte única de deleite. Dele, conhece-se a vida de famlia e profissional - integrou durante décadas os quadros da Siderurgia Nacional, onde desenvolveu também actividade cultural e associativa de relevo -, o empenhamento político, mesmo antes da revolução de Abril de 1974 e, no caso que nos interessa agora, a prática da poesia. da pintura e do desenho. Destacamos este último núcleo de trabalhos, que constituem o cerne desta exposição antológica, já que eles revelam um processo exaustivo, consciente e sistemático que nem a pintura e, em menor grau, a poesia, podem deixar transparecer. Moita Macedo tem, de facto, uma notável produção desenhística, que se declina em séries e temas ja estudados e analisados por historiadores da arte de renome, como Fernando António Baptista Pereira e Vítor Serrão, e curadores não menos reconhecidos, de que destacaremos António Franco, já falecido, e que foi responsável pelo MEIAC - Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo, que teve um importantísimo papel de divulgação da arte contemporânea portuguesa em Espanha.

    Baptista Pereira' foi o primeiro a avançar com uma classificação do conjunto de centenas de desenhos de Moita Macedo, ancorando-a contudo num suporte figurativo que hoje nos parece ficar aquém da riqueza estilística que o artista sempre revelou. "Desejos: rostos e nus", "Tauromaquias", "Quixotes", "Cristos e Calvários", "As cidades, as figuras, as lutas" ou "Caravelas" clarificam de facto aparentemente núcleos na extensa obra sobre papel de Moita Macedo Contudo, a prática do desenho não obedece aos mesmos parâmetros - de intenção, de estudo prévio - da pintura ou da escultura. A mão que desenha, mesmo que ela se sirva do pincel e da tinta da china, de uma esponja com tinta, de um pedaço de carvão ou sanguinea - possui uma liberdade que o pintor não reivindica. Uma liberdade que inclui até o corpo: é possível desenhar em pé, esticado, acocorado, no chão ou pregando a folha de papel na parede. Em suma, o desenho é livre, e mais do que isso, liberta quem o faz. No automatismo que Moita Macedo sempre preferiu, não existem divisões em géneros, estilos, temas. Mesmo quando eles surgem uma e outra, e ainda outra vez.

    Autodidacta, sem formação superior em qualquer academia, Moita Macedo, como tantos outros artistas da sua geração, e mesmo mais novos, começa a frequentar a Cooperativa Gravura em 1963. Conhece aí Almada Negreiros. Com este mestre modernista aprende os rudimentos da tecnica da gravura que, num ambiente provinciano como existia na altura em Lisboa, sem mercado da arte consistente, era um dos raríssimos meios que estavam à disposição dos artistas para criar e comercializar o seu trabalho. Almada, pintor e desenhador exímio que nesta época ainda não enveredara pela abstracção geométrica (como sucederá na última obra que criou, o painel "Recomeçar", feito para o edifício da sede da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1970) partilha com Moita Macedo o interesse pela experimentação formal, técnica e estilística que podemos ver, por exemplo, no virtuosismo com que alterna um cubismo elegante com um traço quase naif e popular nos grandes murais feitos para as gares marítimas da Rocha - Conde de Óbidos, na década de 40. Por outro lado, dois anos mais tarde conhece Artur Bual, de quem se tornará amigo. Como este, Moita Macedo irá desenvolver, também no desenho mas sobretudo na pintura, um automatismo de raiz surrealista, embora nunca enfeudado aos programas e manifestos dos grupos mais ortodoxos, de influência francesa.

    O surrealismo de Moita Macedo, pelo contrário, é profundo, instintivo, radicado na consciência de que existe algo na arte que está muito para além da racionalidade, da palavra, da explicação ou da teoria. Existe, na arte, qualquer coisa que é da ordem do indizível, e é a permanente procura desse ponto de origem que fundamenta a sua obra plástica. Há algo de não alinhado, de nada ortodoxo, de livre, em suma, nos traços, nas manchas, nos escorridos, nos pinceis e nas trinchas que atravessam a folha de papel, a tela ou o platex, e mesmo, numa serie excelente de peças, nos separadores de dossier de escritório, que foge completamente a todas as classificações que nós, historiadores e críticos de arte, lhe queiramos dar.

    Em tempos, o escultor Rui Chafes disse que a obra de um artista não tem que ver nem com as experiências, nem com arrumações de arquivista. Assim é; tudo isso são ferramentas de quem escreve e ordena a história, mas não de quem faz mesmo: aje no terreno. Se, de facto, podemos distinguir nas várias obras que estão incluídas nesta exposição forma e figura, por um lado; ou preenchimento do espaço disponível num all-over sem centro nem periferias, de parentesco certo e evidente com os vários expressionismos abstractos e líricos que, de Nova lorque a Paris, proliferaram a partir do fim da segunda guerra mundial, não é menos verdade que a transição de um modo de entender o suporte para outro não obedece a outra ordem que não seja a da lógica interna da obra. Moita Macedo não é nem figurativo nem abstracto, o seu traço não é aberto nem fechado, a sua técnica de eleição não é nem a pintura nem o desenho, ou a gravura, nem o meio de que se serve será o carvão ou a tinta-da-china, o lápis de côr. É tudo isso ao mesmo tempo, ou seja, a conjunção que se deve aqui utilizar para tentar definir a sua obra (tarefa à partida condenada a falhar!) será sempre um "e" em vez de um "ou". Pollock não está muito longe da sua obra. Pollock, e Hans Hartung, e Paul Mathieu, e Almada, e Picasso, e Bual, e Motherwell, e a pintura simultaneamente religiosa e humaníssima de Rouault...

    E a poesia, que é por natureza de sentido aberto, e once podemos encontrar um paraelsmo com a ánsia de abarcar todos as formas possiveis da materialização da arte, num jorro criativo que não parece esgotar-se nunca. É na poesia, com efeito, que Moita Macedo se aproxima com mais eficácia da multiplicidade de fontes de inspiração que nele convergiam, as mesmas que, um dia, lhe fizeram dizer "pintei versos, escrevi quadros".

    Atente-se em Definição de uma plástica, onde afirma:

    A minha poesia é pedra dura

    Basalto que rolou pelos fraguedos

    Tem por vezes a algidez da planura

    Outras vezes a quentura dos vinhedos

    E o pensamento é terra

    O meu sonho é um cavalo

    Sem ter freio

    Meu suporte e razão

    De asas aladas

    Que me leva pairando

    Nas alturas

    A quanto sinto

    A pequenez das estradas

    E embebo de uma cor avermelhada

    O traço com que firo as minhas telas.

    Na estrita equiparação entre elementos da natureza, a terra, o pensamento, a estrada, o animal e, enfim, o traço vermelho que fere a superficie da pintura reside, sem dúvida, uma das chaves da interpretação da obra deste artista. Moita Macedo integra a geração que deu sentido e valor, ainda na década de 60 e em Portugal, à abstracção, entendida esta no seu sentido mais radical e exigente da palavra e do conceito. Não se deixando depois academizar nem enlear em maneirismos mais amáveis, renovou-se sempre, arriscando uma e outra vez regressar à origem da criação para dar asas ao impulso criativo que era tambem, para ele, de natureza vital - uma questão de respiração, de pele, de ferida.

    Luísa Soares de Oliveira, crítica de arte

| Maria João Fernandes

    A PINTURA DE MOITA MACEDO

    Moita Macedo dedicou-se a uma profissão distante do horizonte das artes plásticas, mas, entre o final dos anos 60 e o início dos anos 80, durante cerca de quinze anos produziu uma obra plástica notável até hoje praticamente desconhecida. O pintor deixou-nos um interessante legado poético, testemunho de uma sensibilidade atenta aos paradoxos e maravilhas da existência intensamente vivida e sonhada. A sua poesia, reunida em duas antologias Cantares de Amigo (1983) e Poemas da Terra dos Homens Curvados (1993), mereceu um estudo de Urbano Tavares Rodrigues, que a seu respeito evoca Aragon, Neruda e a herança "dos que desde Cristo e Espártaco até Guevara, até Salvador Allende defenderam a dignidade humana e apontaram caminhos de amor ou de revolta, ou de ambos esses percursos, para se chegar a uma praia de luz onde enfim rimassem fraternidade e felicidade."

    De contido mas vibrante dramatismo quando aborda os temas sociais em poemas como “Emigrante” ou “Coral Alentejano”, de um depurado lirismo próximo dos versos de Saúl Dias (outro pintor-poeta) nos seus poemas de amor, amor sobretudo à vida e à sua oculta doçura, Moita Macedo concilia, na sua poesia, como na sua pintura, dois grandes afluentes de um único rio, o social e o imaginário.

    Os caminhos da criação são obscuros e imprevisíveis. Só a necessidade interior que Kandinsky definiu em conhecido livro ou “o desejo de criar uma realidade, a vontade de forma”, explicam a súbita eclosão de um talento até então aprisionado, em vocações tardias de artistas marcantes como Gauguin ou Dubuffet, que, ao descobrirem uma nova e plástica expressão do mundo, não mais deixaram de executar a grande sinfonia de uma vida que encontra na aventura estética o seu mais profundo e mais autêntico sentido.

    A vida da arte é mais verdadeira do que a própria vida. Devolve-a às suas fontes primitivas, a uma essência mágica, momento cosmogónico de uma liberdade e de uma invenção originais. Tempo de abertura, de receptividade do ser ao ser do espaço, ao espaço do ser, diálogo de substâncias que alimenta os mistérios e as evidências da criação.

    Arte significa a liberdade de criar uma linguagem absolutamente nova, a proposta de novos universos dentro do universo.

    Desconhecemos em que instante um estranho impulso terá conduzido Moita Macedo ao seu percurso criativo, ao qual infelizmente nunca pôde dedicar-se por completo. Talvez a Índia, onde esteve nos anos 50, lhe tenha rasgado novos domínios da sua sensibilidade de artista que ainda não se reconhecera. Em Damão executou o restauro da capela de Nossa Senhora do Mar. Em 1963 integrou-se na Cooperativa Gravura e nesse contexto iniciou-se na gravação em vidro. No mesmo ano conheceu Almada Negreiros, contactando com o universo da sua exuberante e versátil criatividade, e mais tarde Artur Bual, cuja pintura fortemente gestual, embora figurativa, o terá talvez influenciado.

    O seu primeiro trabalho conhecido reflecte admiração pelo cromatismo vigoroso e muito contrastado de Gauguin, caminho que abandonaria. O artista tacteava ainda os rumos da sua expressão. Entre 68 e 69 assistimos ao despontar de um universo, inesperada janela no dédalo dos caminhos possíveis, fenda no muro das aparências que vais revelando a cor a uma nova luz com a graça de uma revelação. Luz suavemente velada, nocturna, um verde de fundo submerso, lunar, em paisagens de uma melancolia doce, quase irreal.

    Fantasmagorias de azul submarino, liquefeito, incêndios consumindo a distância, castanhos da terra dos homens e dos sonhos crepusculares. Figuras e cores de uma melancolia palpável, paisagens marítimas mergulhando no ocaso e dele emergindo, instantes de revelação de uma consciência desperta para os íntimos segredos e as silenciosas melodias do espaço. Troca de segredos, balbuciante, que a mão regista diligentemente. Nesta irrealidade vibra a secreta alma da realidade.

    A linha desfaz-se sob o impulso e o fluxo de uma cor nocturna, caudalosa, e no entanto de uma doçura e suavidade envolventes e perturbadoras. O negro entre acordes rubro compõe um mundo de palpitantes sugestões oníricas, povoando um quotidiano sombrio resgatado por fugidias memórias, como a figura feminina de olhos fechados e postura pensativa num trabalho de 1968 parece sugerir. Anima feminina, sensitiva e vibrátil perpassando fugaz na pintura de Moita Macedo, na precisão do desenho desfeito pela espátula, no rigor da sua beleza e plástica, presença de uma sensorialidade musical a que a sua obra vai dando forma.

    Maria João Fernandes

    Mestre em História de Arte,

    Membro da Associação Internacional de Críticos de Arte

| Sílvia Chicó

    MOITA MACEDO - O PRAZER DA GESTUALIDADE

    Não tendo conhecido pessoalmente o autor das obras desta exposição, mas lendo atentamente os testemunhos dos que sobre ele escreveram, constato que a obra pertence a um artista cuja personalidade foi de grande abertura e capacidade de simpatia, alguém que celebrava a vida nas mínimas coisas que fazia.

    Olhando a pintura de Moita Macedo, não pude deixar de me interrogar sobre o seu contacto com a obra plástica de Henri Michaux, artista que em 1973 expôs nesta mesma galeria, momento de grande impacto no meio lisboeta de então.

    Absorvidas e assimiladas estavam as experiências dos vários abstraccionismos, lírico e geométrico, como então se dizia, na linguagem crítica europeia.

    Moita Macedo é um pintor cuja obra revela uma consciência gestual, bem como uma voluntária exploração matérica, em que valores não figurativos prevalecem sobre as abstracções de figuras, como podemos ver em algumas tauromaquias ou marinhas. Para além de Michaux creio dever falar-se na indelével marca das tauromaquias de Júlio Pomar, que certamente o artista conheceu.

    É na exploração da mancha matérica que Moita Macedo se aplica, na cor sobreposta que raspa com um objecto acutilante ,é uma exploração típica dos Expressionismos -abstractos e não só - a de um deliberado anti esteticismo, da expressão do instante, da espontaneidade.

    Verificamos nas obras de Moita Macedo como se produz uma voluntária sobreposição de gestos, como se o artista se compraz no riscar as camadas de tinta que vai sobrepondo, nessa aproximação a uma gestualidade primitiva, quase da garatuja, em que adivinhamos um prazer quase iconoclástico, como a negar uma escrita anterior, refazendo sem cessar a sua inscrição dinâmica na tela. Não existem preocupações de elegância formal, a procura do artista consiste fundamentalmente em fixar nas obras a energia do seu gesto.

    Também as harmonias cromáticas que o pintor utiliza são de modo a combater um esteticismo que a muitos outros pintores foi caro, as suas cores são ásperas, combatem a elegância que fez moda decorativa em muitos pintores prontos a serem consumidos por um gosto que procura nas obras de arte uma mera função decorativa.

    É gratificante verificar que Moita Macedo, que não era um virtuosista, vai ao longo da sua obra manifestando uma atitude sempre experimental; as suas obras revelam a procura incessante de uma imagem o mais perto possível do inconsciente.


    Colares, Outubro de 2003

    Prof. Dra. Sílvia Chicó

| Tomás Paredes

    MOITA MACEDO

    "Conheci Poemas e pinturas, desenhos e batimentos, dores e cores, calor, resplendor limpo da simplicidade: o mundo de Moita Macedo! (...) A sua pintura – óleos e acrílicos, carvão e técnica mistas/papel, platex e telas – que sussurra as formas, que as esboça, para se deixar ganhar pelo traço, até rodear o volume e criar o espaço, mais lugar que espaço, onde, por traço, até rodear o volume e criar o espaço, mais lugar que espaço, se espraia o seu expressionismo doce violento, de cores enfurecidas, de atitudes nobres, à volta do homem e do seu destino incerto. Os seus desenhos de D. Quixote, as suas mulheres, tauromaquias e sonhos; as cidades apagadas que se iluminam, os sonhos, sempre dispostos a servirem a liberdade do homem; os Cristos, as caravelas, o mar, a noite, a noite transfigurada, com a sua música cuidada rivalizando com o silêncio, com a necessidade e com a raiva: pintura não de profissional, embora esbanje ofício, se não social, existencial, expressionista, não complacente, buscadora, vidente. (...)

    A partir de uma figuração lírica, deriva para um expressionismo não referencial, com diferentes etapas, mas nunca se esquecendo do homem, estabelecendo sobre a tela um diálogo entre a fantasia e a realidade, um jogo, respeitador e libertário, onde as cromias se convertem em resíduo vivo do tempo que passa, como uma crónica da sua intimidade, que deixa constância do seu eu e da sua circunstância. (...)

    Tomás Paredes
    Presidente da Associação de Críticos de Arte de Madrid

| Urbano Tavares Rodrigues

    MOITA MACEDO

    Um talento agressivo, irrequieto, uma personalidades histriónica, uma irreverência que até parece congénita. Porém, a pintura é boa de verdade, com certos traços à Capogrossi, parentescos com a monstrificação pós-tachista e com os códigos da neofiguração italiana.

    E uma surpreendente e violenta arte da colagem. E, além disto, muito boa pintura, gestual, sinalética, expressionista.

    Além da improvisação, do insólito, da velocidade, há a força da matéria e a estrutura calculada da "explosão".

    Aí está Moita Macedo. Um momento do seu trânsito veemente, iconoclástico - e bem realizado - de uma estética para outra, dentro da sua mesma forma de encarar o mundo.

    Urbano Tavares Rodrigues
    "O Século" - 24 de Abril de 1974

| Vítor Serrão

    O MARAVILHOSO MUNDO DO DESENHO EM MOITA MACEDO:

    Notas para o reconhecimento do processo criativo de um Grande Artista

    A publicação do álbum de Desenhos seriados de Moita Macedo, organizado por Fernando António Baptista Pereira, constitui não só a base que faltava para a compreensão dos processos criativos desse pintor-poeta ainda mal estudado, mas também um eficaz testemunho de revalorização da arte do Desenho como fonte de informação insubstituível no terreno da História da Arte científica.

    O artista é um dos nomes injustamente nebulosos no panorama da arte portuguesa novecentista. De facto, José Albano Pontes Santos Moita Morais Macedo (1930-1983), o pintor Moita Macedo, apesar da sua altíssima qualidade plástica, é ainda hoje uma personalidade mal conhecida da História da Arte. Talvez por causa da sua formação autodidacta, ou talvez ainda pelo facto de a sua obra ser numerosa e se expressar em várias linhas temáticas e em diversos materiais e distintas técnicas e suportes, a verdade é que só após a sua morte prematura o fascínio pelas qualidades deste pintor-poeta se manifestou de modo mais consistente nos meios ligados à crítica da produção artística.

    O caso exemplar deste livro de Fernando António Baptista Pereira, onde pela primeira vez o olhar do historiador de arte interroga segundo uma metodologia organizada as potências criadoras do artista, seguindo em paralelo o seu percurso verbal e gráfico, que é de resto indissociável para a compreensão do seu legado artístico (lembrando-se que, como o próprio Moita Macedo afirmou num poema, «pintei versos, escrevi quadros»), revaloriza o desenho para compreender os caminhos da pintura.

    Os desenhos a carvão, grafite, tinta da china, a pastel ou óleo, sobre cartão ou papel, são assaz numerosos, por vezes breves esboços interrompidos, e atestam essa busca frenética de uma ordem pessoal de ver o mundo.

    Este «pintor de natureza surpreendentemente rica», como o definiu Urbano Tavares Rodrigues, foi, entre outras coisas, poeta, escritor, militante de causas cívicas, resistente à ditadura, viajeiro por terras da Índia tântrica e budista, escultor, autor de capas de livros, conferencista e animador dos círculos culturais da Siderurgia Nacional. Artista ideologicamente comprometido, inconformado e rebelde, estava apto a agir nos seus quadros, no seu desenho e nos seus escritos como se eles fossem «cáusticas condenações do egoísmo triunfante», conforme escreveu o autor citado. Macedo escolheu a via do informalismo expressionista, através da qual melhor soube explorar, em modos muito pessoais (com sábia acentuação do relevo pictural como aqui bem observa Baptista Pereira), esse encantamento pelos caminhos de uma pintura dilacerante, marcada pela distorção das formas, pela devoção pelos nocturnos, pelas convulsões do traço e da matéria, num diálogo libertário entre o onirismo e a realidade.

    Tem-se afirmado que a sua arte oscila entre um informalismo de base, devidamente assumido e consciencializado, e a tradição dos novos selvagens, em traços onde o neo-expressionismo abstracto e o gestualismo constroem as experiências e as possibilidades do artista. Esta auto-definição de tendências teve uma causa: depois de ser incentivado no seio do ambiente artístico da Cooperativa Gravura, onde conheceu o seu amigo Almada-Negreiros, teve de seguida o conhecimento directo da obra de Artur Bual, artista que lhe marcaria graus de exigência e estímulo para linhas criadoras em novas dimensões de nostalgia, fulgor, desencanto e esperança... Essas linhas a que o pintor se vai manter fiel ao longo de duas décadas de incessante produção foram entendidas pelo arqueólogo Cláudio Torres ao escrever, muito oportunamente, que existe em Moita Macedo «uma ideia subterrânea, nunca aprisionada na expressão fugaz de um aparente abstraccionismo, que brota, alucinante e irreprimível, na sugestão nocturna de um corpo feminino, nos panejamentos do velame ou ossatura de uma barca moribunda, na respiração dolorosa de um deus esquecido ou no frio horizonte de um entardecer»...

    A personalidade de Moita Macedo continua, todavia, obscurecida por falta de um geral reconhecimento que se impõe, como se o seu sinuoso itinerário criativo, por ser essencialmente complexo e heterogéneo, apenas permitisse ténues impressões generalistas e dificultasse as abordagens críticas de conjunto. Além de artigos esparsos a seu respeito, como o que lhe dedicou o pintor Eurico Gonçalves (1996) e que é especialmente importante para o entendimento do pintor-poeta, ao elogiar com acerto a «ousadia de uma técnica irregular, espontânea e insubmissa», apenas existe uma valiosa monografia do artista, da autoria da historiadora de arte Alice Tomás Branco (edição Caleidoscópio, 2003), que fixa o essencial da obra, nas diversas técnicas, suportes e variações temáticas, e da fortuna crítica. Faltava, todavia, um «corpus» seriado das centenas de óptimos desenhos que Macedo nos legou, esses «fundos de gaveta», ou «armários cheios», desorganizados e sem ordem, que se impunha analisar a partir da definição dos seus tanto quanto possível lógicos fios condutores. Desta tarefa difícil se incumbiu, com rigorosa probidade científica e dotes de sensibilidade arguta na observação e escolha das peças, o historiador de arte e professor universitário Fernando António Baptista Pereira, e constitui a essência deste belíssimo livro, que explica a essência do informalismo gestual de Moita Macedo.

    Os desenhos – base para o entendimento do mundo de sonhos e agitações criativas do pintor, mas também, em si mesmo, verdadeiros desenhos-pinturas, dado o recurso frenético à cor que é recorrente nestes trabalhos, e face às fronteiras ténues que no caso possam traçar-se entre pintura e desenho... foram devidamente agrupados por Fernando António Baptista Pereira em quatro grandes categorias temáticas, a que chamou: o grupo Desejos, Rostos e Nus, onde o onirismo buliçoso e para-erótico seduz pela diversidade de conceitos lineares e as buscas obsessivas em variações sobre um mesmo tema, o grupo Os Outros Eus, deriva na obra do artista por outros temas, como o da Tauromaquia, registo das suas origens ribatejanas, mas também pelos Cristos martirizados, onde o sopro de Bual se expressa, o grupo Presença do Mundo e dos Homens, onde as visões de cidades utópicas, os agrupamentos de figuras e as cenas de trabalho se multiplicam, e, finalmente, o grupo Evasão e Utopia, acaso o mais interessante, através do qual melhor se entendem as obsessões do pintor pelas manchas complexas e pela gestualidade de um informalismo muito pessoal.

    Tem-se destacado justamente no artista a touche vigorosa de um gestualismo que se exprime através do claro-escuro e do barroquismo de manchas de um Hartung, por exemplo, e é precisamente pelo estudo dos desenhos, como o fez solidamente Fernando António Baptista Pereira, que este livro agora proporciona, que melhor se vai poder entender essa expressão plástica de Moita Macedo.

    Vítor Serrão
    Historiador de Arte, Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa

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